quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

A Máquina do Tempo - o clássico e suas seqüelas: resenha de Gérson Lodi-Ribeiro

Hoje vamos tomar a liberdade de nos afastarmos um pouquinho da temática básica desta coluna, as histórias alternativas, para prestar a justa homenagem a um dos grandes clássicos da ficção científica, A Máquina do Tempo (1894) de H.G. Wells e aproveitar o ensejo para falar também das continuações desse trabalho seminal, escritas não por Wells em si, mas por autores de FC contemporâneos, autores que se constituíram numa espécie de herdeiros literários do velho mestre. São as famosas sequels, muitas vezes mal traduzidas entre nós como seqüelas. Não raro, a baixa qualidade da continuação acaba justificando o emprego do português ruim, embora não seja este o caso de nenhum dos trabalhos que analisaremos a seguir.

A Máquina do Tempo é uma obra de grande penetração no imaginário popular, conhecida e apreciada mesmo por aqueles que não se consideram aficionados do gênero. Essa penetração foi potencializada pelo filme homônimo de George Pal, lançado em 1960 e reprisado muitas dezenas de vezes em nossas sessões da tarde. Falar d’A Máquina do Tempo propriamente dita é como chover no molhado. Pois é. Falar mais o quê? Que foi a primeira abordagem de viagem temporal da FC? Repetir pela enésima quarta vez que se trata dum enredo onde um viajante temporal visita um futuro remoto e se depara com uma humanidade dividida em duas subespécies distintas? Tecer considerações surradas sobre a alegoria proposta por Wells das contradições inerentes à divisão de classes presente no capitalismo inglês do final do século XIX? Não. Tudo isto já foi feito e bem feito, muitas e muitas vezes. O leitor interessado não encontrará dificuldades em garimpar análises brilhantes sobre o assunto, quer nas enciclopédias sobre o gênero, quer nos vários periódicos de FC que se prezam como tais.

Por isso, prefiro rememorar aqui as diferenças entre o romance e o filme.

Em termos de enredo, A Máquina do Tempo de George Pal é um filme razoavelmente fiel ao romance que o inspirou, mas com uma óptica totalmente distinta; uma ênfase (ou, no caso, falta de ênfase) diferente.

O filme não foi a primeira experiência de Pal em adaptar romances de Wells para o cinema. Sete anos antes ele havia dirigido Guerra dos Mundos, um filme que transferiu a ação do ataque dos marcianos da Londres vitoriana do romance original para o meio oeste americano da década de 1950.

Em A Máquina do Tempo, Pal foi fiel ao romance ao manter o início da narrativa no período vitoriano. Ao contrário do que acontece no livro, no filme o Viajante não segue direto para 800 mil anos no futuro, interrompendo sua jornada várias vezes ao longo do século XX e até gozando do privilégio dúbio de presenciar o bombardeio nuclear de Londres em 1966. Em compensação, ausente do filme está a jornada do protagonista ao futuro remoto de 30 milhões de anos, onde a humanidade encontra-se extinta há muito, uma cena a meu ver fundamental para transmitir a profundidade da perspectiva filosófica wellsiana sobre a evolução.

Contudo, o maior defeito do filme de Pal, se é que podemos chamá-lo assim, é reduzir a crítica social contundente de Wells à velha fórmula de sci-fi hollywoodiana. Os paralelos dos Morlocks trogloditas com a classe proletária vitoriana e dos Eloi belos, mas infantilizados e inconseqüentes, com a abastada classe alta inglesa perderam-se no meio do caminho. George Pal transforma o Viajante Temporal amargo e cheio de dúvidas de Wells num herói romântico confiante e disposto a liderar os Eloi numa revolução contra seus opressores Morlocks.

Talvez o maior mérito do filme de George Pal seja o de despertar o interesse de uma parcela considerável do público para o romance original de H.G. Wells.

* * *

Ao chegar à última página d’A Maquina do Tempo, a maioria dos leitores se pergunta o que teria acontecido ao Viajante Temporal. Teria esse herói sem nome sido bem sucedido na tentativa de reverter a decadência da espécie humana? Ou, tal como o passado wellsiano, também o futuro seria imutável?

Coube ao autor norte-americano K.W. Jeter o privilégio de fazer a primeira tentativa de responder essas perguntas em seu romance Morlock Night, lançado em paperback em 1979 pela série de FC da DAW Books.

Segundo Jeter, o Viajante Temporal teria regressado ao futuro remoto apenas para ser trucidado pelos Morlocks. Os hierarcas Morlocks empregam a máquina do tempo para invadir a Inglaterra vitoriana de 1892. Justo nessa hora de maior perigo para a humanidade em geral e a Britânia em particular, surge seu maior defensor: o legendário Rei Arthur, convocado às pressas por ninguém menos do que o próprio mago Merlim, que prefere ser chamado aqui por denominação latina, Ambrosio.

Embora eu não tenha nada contra a tentativa de fundir os ícones das saga arturiana às temáticas propostas por Wells em seu romance original, o fato é que Jeter não realizou uma fusão harmoniosa. Em Morlock Night as questões levantadas por Wells são inteiramente abandonadas em favor da mística de Excalibur.

Lá para o meio do romance, o autor ainda tenta voltar aos trilhos do argumento vitoriano, ao propor um submarino bastante semelhante ao Nautilus de Jules Verne, só que pilotado por Morlocks e construído por cientistas de Atlântida. Mas tanto quanto o submersível em questão, a tentativa naufraga umas poucas páginas depois.

Como um todo, Morlock Night é um romance que não empolgará o leitor que espera encontrar uma continuação do original wellsiano e as respostas às questões deixadas em aberto pelo romance clássico. No que me diz respeito, senti-me algo decepcionado ao final da leitura.

A Enciclopédia da Ficção Científica considera esse trabalho como o precursor dos romances steampunks das décadas seguintes. É um mérito discutível, que depende essencialmente de se optar por uma definição mais estrita ou mais abrangente do subgênero em pauta.

* * *

Um trabalho que merece de fato o epíteto de continuação d’A Máquina do Tempo é o romance curto The Man Who Loved Morlocks (1981) de David E. Lake, um autor britânico nascido na Índia e naturalizado australiano.

Lake realmente mostra o que aconteceu ao Viajante Temporal em sua segunda jornada ao futuro remoto. Essa segunda empreitada é narrada na primeira pessoa por um Viajante Temporal agora mais experiente e preparado para as dificuldades com as quais se irá defrontar.

Após uma breve parada na mesma época onde transcorre a maior parte da ação do romance de Wells, um Viajante decepcionado e desiludido decide prosseguir até o Ano Milhão.

Nessa época longínqua, quase 200 milênios no futuro em relação à era onde a humanidade encontrava-se dividida entre as duas subespécies apresentadas no romance clássico, já não existem Morlocks e Eloi. Ainda assim, há uma humanidade por assim dizer, uma espécie humana representada sob a forma de uma raça de humanóides esguios e dotados de uma beleza exótica que logo cativa a atenção do Viajante.

Bem tratado pelos nativos, o Viajante estabelece uma espécie de aliança com o rei dessa tribo de neo-humanos bárbaros, acabando por se apaixonar pela bela filha do monarca. No clímax do romance, ele consegue afinal desvendar os mistérios da Evolução Humana. O processo todo se dá através de uma revelação que forçará o Viajante a superar os preconceitos típicos de um cidadão da Era Vitoriana. Neste sentido, aliás, podemos encarar The Man Who Loved Morlocks como uma bela homenagem e, ao mesmo tempo, uma crítica bem humorada às idéias e conceitos que H.G. Wells expressou em seu romance original.

Como adendo extremamente divertido e valioso ao romance curto descrito acima, há ao final do livro uma narrativa pseudofactual apresentada sob a forma de um relatório pretensamente redigido por um cientista Morlock a um hierarca dessa espécie. O relato descreve em termos sucintos e objetivos a reação de uma equipe de cientistas de uma das reservas naturais da Ilha do Norte ao aparecimento surpreendente de um espécime até então desconhecido pela ciência oficial, uma estranha criatura humanóide de poderes incompreensíveis que o sábio apelida de "Diurno Gigante".

* * *

Talvez a melhor continuação d’A Máquina do Tempo, a sua seqüela definitiva (no bom sentido) seja o maciço romance The Time Ships (1995), de Stephen Baxter, um autor inglês que tem sido apontado por alguns críticos do gênero como um novo Arthur C. Clarke.

Baxter decidiu escrever sua continuação para tentar explicar o que acontece quando o Viajante Temporal tenta regressar à época dos Morlocks e Eloi. Contudo, o leitor incauto não deve se deixar enganar. Não há espaço aqui para aquele clima relaxado da Era Vitoriana, seja ele real ou simulado... O autor propõe-se a escrever uma continuação que, segundo ele, o próprio Wells teria escrito, caso dispusesse em sua época dos conhecimentos científicos proporcionados pela física e astronomia modernas.

Como as outras continuações, The Time Ships tenta explicar o que aconteceu ao Viajante Temporal em sua segunda incursão ao futuro.

Só que Baxter sabe bem o que qualquer leitor de FC experiente já desconfia: o relato das aventuras do Viajante Temporal durante seu primeiro regresso no futuro, o conhecimento dos fatos que ainda estão por acontecer, é suficiente para alterar aquele futuro. Daí, quando o Viajante retorna ao futuro, depara-se com um Império Galáctico no melhor estilo da trilogia Fundação de Isaac Asimov... Um Império Galáctico Morlock!

Atordoado com a vastidão dessa perspectiva cósmica (capaz de incluir em seu bojo até mesmo a existência — na superfície interna de uma das várias esferas de Dyson concêntricas existentes no Sistema Solar — de uma variedade atávica da humanidade, representada por seres humanos como nós; gente como a gente...), o Viajante Temporal não enxerga outra saída que não a fuga para seu presente vitoriano. E nessa fuga ele traz consigo a tiracolo um estudioso Morlock.

Mas o presente (ou da nossa perspectiva, o passado da última década do século XIX) não é mais o que costumava ser... É neste ponto do romance que o leitor começa a vislumbrar a real extensão da miríade de futuros e passados alternativos gerados a partir das travessuras do Viajante Temporal. A residência dele está cercada por um tanque-de-guerra gigantesco, numa alusão clara a um outro trabalho de Wells, The Land Ironclads.

O tal veículo também é uma máquina do tempo. Sua tripulação captura o Viajante Temporal (na verdade duas versões do Viajante, aquela que nós conhecemos e uma outra, cerca de dez anos mais jovem) e o Morlock, levando-os para sua época natal, situada numa linha temporal alternativa, onde grassa um conflito mundial contínuo há mais de meio século, uma guerra de desgaste que transformou os campos em ruínas e as cidades em urbes revestidas por colossais cúpulas de concreto armado. Uma guerra que leva a humanidade às últimas conseqüências do caos, pois tanto os Aliados quanto os Alemães dominam as técnicas das viagens retrotemporais e se encontram numa corrida insana para obliterar a nação inimiga da existência através da manipulação de seu passado.

Numa nova fuga, tentando regressar à sua linha histórica original, o Viajante, o Morlock e um pequeno comando britânico acabam naufragando no Paleoceno, há mais de 50 milhões de anos, cerca de 10 milhões de anos depois da extinção dos dinossauros.

Plantada no passado remoto, essa semente de humanidade germina de forma surpreendente, gerando uma civilização técnica galáctica cujo verdadeiro âmbito é incompreensível e cujos últimos descendentes longínquos são as máquinas oniscientes com quais o Viajante Temporal e o Morlock deparam-se quando conseguem finalmente regressar ao presente.

The Time Ships é um romance ambicioso em mais de um sentido. Um romance extenso e interessante. Um trabalho que, embora possua alguns trechos maçantes, merece ser lido com atenção, pois é plenamente capaz de despertar o decantado sense of wonder no espírito do leitor mais pragmático, descortinando maravilhas de um futuro quase além da imaginação, de uma forma que só os melhores romances de FC conseguem fazer. Isto tudo e ainda mais, visto que cumpre as promessas de mostrar o que acontece com o Viajante Temporal e de escrever uma continuação d’A Máquina do Tempo plenamente coerente com os conhecimentos científicos da época atual.

* * *

Embora não pretenda ser uma continuação d’A Máquina do Tempo, a novela The Dechronization of Sam Magruder (1996) é o tipo de história onde se nota a influência clara do romance de H.G. Wells como fonte de inspiração original.

A novela é um trabalho de ficção póstumo do emérito paleontólogo norte-americano George Gaylord Simpson, cujo manuscrito foi encontrado por sua filha cerca de uma década após a morte do pai e enviado para os editores.

É a história de um cronologista do século XXIII — isto é, um cientista especializado na física dos fenômenos temporais — que é acidentalmente transladado para o período Cretáceo de 80 milhões de anos atrás. Forçado por tais circunstâncias extremas, o protagonista adota um estilo de vida primitivo para garantir sua sobrevivência física. Para assegurar sua sobrevivência psicológica e se manter como única criatura pensante da Terra, Magruder se esforça para deixar para a posteridade um registro detalhado de suas vitórias e agruras. Como homem de ciência, ele não nutre grandes ilusões: sabe que as chances desses registros duramente gravados em pedra serem encontrados são mínimas. E,sobretudo, sabe que, mesmo que sejam encontrados, isto não fará a mínima diferença para ele. Contudo, ainda assim, em prol de sua sanidade, ele continua escrevendo-os até o final.

A história é apresentada do ponto de vista de um grupo de amigos cientistas do século XXIII que afinal têm acesso aos registros líticos deixados por Magruder no Cretáceo.

Embora Simpson não seja o mais habilidoso dos estilistas, do ponto de vista da FC hard a novela é um prato cheio. Um dos pontos altos da história é justo a crítica ardente às doutrinas paleontológicas e evolucionárias diversas, com ênfase especial às heresias saurianas propostas por Robert T. Bakker (que aliás é generoso e cavalheiro o bastante para produzir a bela capa com seu traço inconfundível, assinando-a com o pseudônimo de Bob Bakker).

Contando ainda com um prefácio de Arthur C. Clarke e um posfácio de Stephen J. Gould, outro eminente paleontólogo americano (ele próprio um aluno de Simpson), The Dechronization of Sam Magruder é antes de tudo a história do homem mais solitário e mais desesperançado do mundo. Reparem, desesperançado aqui é quase que um antônimo de desesperado. Pois se o autor pretende transmitir uma mensagem, esta talvez seja que, mesmo na solidão mais profunda e definitiva, permanecer humano, ou seja, continuar se portando com a dignidade de uma criatura pensante diante das piores adversidades é uma obrigação ética, uma atitude que ainda vale à pena e, sobretudo, é o único caminho correto a seguir.

[*] Publicado originalmente no fanzine Megalon.

Seguidores