quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O Rabo da Serpente: um conto de Alexandre Mandarino

Elijah entrou na câmara e sentiu um arrepio. Estranhamente, o ar enregelado parecia vir justamente dos incensos posicionados nos cantos do vasto cômodo. O físico bufou: "esse pessoal do Departamento M adora contrariar meus detalhes mais queridos". Como havia sido previamente combinado, ele retirou o sobretudo, acondicionou-o dobrado no seu antebraço direito e posicionou-se de pé na parte central da câmara, que estava praticamente vazia. À sua volta, além dos incensos (ele não conseguia distinguir sobre o que eles estavam posicionados), apenas um jarro de cerca de um metro de altura que, a distância, lhe parecia ser de cobre. "Agora é só esperar os efeitos especiais", pensou.

Mal começava a se cansar da espera e um baque surdo o fez dar uma volta de 90 graus sobre os próprios pés. Olhando para trás, viu que Miguel "Druída" Zelansky estava logo ali.

- Parabéns pela discrição, Miguel. Esperava mais pirotecnia desta vez.

- Só os tolos perdem tempo com gincanas para céticos, murmurou o "pesquisador" do Departamento M.

- Ele está aí?

- Sim, esperando por você. Mas tenha uma certa misericórdia: deixe-o continuar pensando que se trata de uma missão importante. Não mencione a palavra "custódia".

- Claro. Vocês, crowleyanos, teimam em confundir nossa lógica com frieza.

"Druída" apontou para uma porta imediatamente ao lado da que Elijah tinha usado para entrar na câmara. "Ele está ali, esperando por você".

Elijah olhou-o nos olhos por um breve momento, tornou a vestir o sobretudo e deu-lhe as costas, caminhando em direção a porta. Abriu-a e entrou em um pequeno closet, com um armário de roupas, uma mesa e uma cadeira. Sentado, lá estava ele.

- Você é Terêncio Smith, agente especial do Departamento M?

- Sim... Dr. Elijah Gucci, eu presumo? Prazer em conhecê-lo, doutor, suas pesquisas sobre as cadeias de DNA temporais auto-dobráveis é brilhante.

- ... material de anos atrás, replicou Elijah, um pouco surpreso por um desconhecido tratar tão abertamente do trabalho que quase o havia desacreditado totalmente, há anos atrás.

- O senhor conhece as runas de total aleatoriedade? Não? Conheci o homem que as criou, um aluno de Cagliostro, em minha última viagem. Trouxe algumas delas comigo, gostaria de vê-las?

- Talvez mais tarde.

- Ah... sim, a missão nos espera, não? Gostaria de agradecê-lo por essa oportunidade, doutor. O M se tornou um tanto quanto entediante ao longo destes últimos vinte e sete anos. É bom dar uma arejada. Sabe que tenho uma coleção de baralhos magnífica? Todos trazidos debaixo dos narizes dos sacerdotes-supervisores, claro. Eles fingem que não vêem nada, em troca de um ou outro código de invocação de sigilos, e eu posso retornar com algumas coisas. Estes baralhos, sabe, eles são capazes de abrir certos compartimentos temporais, aqueles bem pequenininhos, entende? Como borboletas de acrílico, móbiles sobre berços do século retrasado.

Elijah interrompeu o princípio de monólogo: "sou um físico, Smith, não se esqueça disso".

- ... Claro. Perdão.

- Aqui. Chegamos. Vou deixá-lo aos cuidados do cientista-chefe de nosso Departamento, Luciano Sequeira, bio-químico, sincro-cirurgião experimentado e agente de nível 4. Ele tratará de sua missão e lhe dará maiores detalhes. Adeus.

Com estas palavras, Elijah fechou a porta da sala onde haviam entrado e Terêncio Smith se viu frente a frente com uma equipe completa de pesquisadores-alfandegários, já completamente preparados para a partida.

Assustado, o membro do Departamento M perguntou ao que estava mais próximo:
"a viagem... ela acontece já?".

- Sim, senhor Smith. Receio que tenhamos que ser extremamente rápidos neste caso.

- Oh, sim, claro. Eu compreendo perfeitamente. É um caso típico de "search and delete", como vocês o chamam, estou certo?

- Sim, de certa forma.

- Oh. Obrigado. Como disse há pouco ao Dr. Elijah, é uma esplêndida chance a que os senhores estão me dando. Há tantos anos peço uma, digamos, merecida ausência do Departamento M e...

Ao dizer a letra M, Smith foi rodeado por olhares de surpresa e espanto, vindos do resto da equipe. Sequeira tratou de remendá-lo: "Senhor Smith, o senhor é do Departamento G, esqueceu?".

- G? ... Oh, sim, compreendo. Claro, G, foi exatamente o que eu disse. Mas como eu estava lhe contando é bom lidar com vocês, adoradores da lógica translúcida, nem que seja por uma única vez. Sabe que tenho tartarugas douradas, perfeitamente vivas e rastejantes, trazidas diretamente de uma das versões primitivas de Baghdad? E elas ainda são capazes de soletrar todo o alfabeto, como nos tempos em que foram criadas por Ali Al Aabud, o Sacro.

- Senhor Smith, a câmara alfandegária está pronta. Pode embarcar.

Aqui estão seu cartão cronal e sua caixa registradora.

- Oh! Que emocionante.

- Sabe o que deve fazer?

- Oh, sim, o "Druíd...", quero dizer, o chefe de meu Departamento já me explicou. São apenas algumas décadas atrás, certo? Aqui mesmo, na base. Devo evitar a passagem de uma formiga por um dos corredores, fato que anos depois tornaria factual a possibilidade de loucura e morte de um dos superiores de nível 5.

- Isso. Não há mistério. Apenas caminhe pelo corredor 56-F, tendo o cuidado de pisar exatamente nos locais correspondentes às pegadas marcadas no mapa que seu superior lhe deu. Feito isso, utilize seu cartão cronal e retorne para nós.

- Certo.


Segundos e uma leve dor de cabeça depois, Terence Smith estava no início do corredor 56-E, décadas antes, caminhando em direção ao 56-F.

"Dobro aquela esquina e, imediatamente, deverei passar a seguir à risca o mapa desenhado por 'Druída'. Se isso puder evitar a loucura de um nível 5, fico feliz", pensou.

Passo ante passo, Smith começou a caminhada pelo branco corredor de plexiglass que constituía a passagem 56-E da então base da polícia temporal. Uma estranha sensação de familiaridade ia tomando o seu ser enquanto avançava. "Estes corredores são todos iguais, mas... espere. Não pode ser. Será isso uma brincadeira?".


Enquanto isso, Elijah Gucci estava novamente em pé na parte central da câmara de transição para o Departamento M. Aos poucos, sentiu a presença de três pessoas ao seu redor. Reconhecia duas delas: "Druída" Zelansky e um ancião que já vira, anos atrás, quando ainda trabalhava como físico-assistente na alfândega cronal de Metoorea.

- Ele está a caminho?, perguntou "Druída".

- Sim. Já deve estar lá a essa altura. Em dez minutos, a missão chegará ao fim.

- Ótimo. O senhor deve conhecer meu amigo, o agente Carter (fez um movimento com a mão na direção do idoso). Este, ao lado dele, é o motivo primário desta missão, LeRoy Carmichael.

- O quê??, assustou-se Elijah, dando três passos para trás. - Vocês estão loucos de vez? Esta ameaça constará do relatório para o nível 5, não tenham dúvidas!

- Não seja ilógico, Elijah. Sua triste lógica é o que deixa vocês um pouco menos patéticos. Carmichael está sedado. Ele pode ver e entender o que está se passando, mas seus músculos não reagirão durante a próxima meia-hora. Dr. Carter é o médico de plantão da Prisão e é totalmente responsável pela presença de Carmichael aqui na câmara. Sossegue.

- Mas o que querem dizer com motivo "primário"? A razão da missão não é o próprio Terêncio Smith?

- Não, ele é o motivo secundário, disse Carter.


Smith continuou a caminhar pelo 56-E. As lágrimas vinham aos seus olhos. Finalmente reconhecia por completo aquele corredor, ainda que fosse idêntico aos demais. Sabia o que iria encontrar ao virar a esquina para o 56-F. Não era nenhuma formiga ou qualquer outro elemento Mandelbrot.

"Filhos de uma rameira. O que querem de mim?", pensou. Agarrado de vez à resignação, continuou a caminhar. A esquina estava agora a menos de 50 metros. "Já posso imaginar o que estão dizendo: 'pai, serei um agente como o senhor, quando crescer, ou um sacerdote M como meu avô?'. 'Você será um M, Terê. É mais seguro. E divertido, você vai ver'".

A cada passo, Terêncio relembrava as palavras. A cinco metros da esquina de plexiglass e mármore sintético brancos, as lembranças começaram a se misturar com sua própria audição. As pessoas do outro lado, no corredor contíguo, teimavam em confirmar sua própria memória, recitando uma conversa de anos atrás como um padre medieval recitava sua missa em latim (Smith havia conhecido tantos deles).

"'Mas, pai, eu quero levar uma vida normal'", lembrava Smith.

- Mas, pai, eu quero ter uma vida normal, disse a voz além da esquina.

Desesperado pela ansiedade, Terêncio correu os últimos três metros (não conseguia deixar de se sentir um ator atrasado para entrar no palco e despejar suas falas). Ao virar a esquina, tropeçou em um garoto de oito anos de idade, deixando cair o mapa com as pegadas que "Druída" havia desenhado. "Uma formiga", pensou Smith. "Mesmo no final, uma piada cretina".

Na sala de contrôle cronal, o chefe da equipe disse: "Ele está na posição e momento certos. Vai, agente K, mas permaneça incronicamente incólume".

Ao se abaixar para pegar o mapa inútil de um caminho que já havia trilhado e já conhecia, Smith olhou para dentro de seus olhos. Os olhos lhe responderam, com voz de criança: "Você... eu conheço você. Quando durmo, às vezes".

Terêncio respondeu: "Isso, criança, você me conhece. Estou aqui para que tudo acabe, ainda que só agora tenha me dado conta disso". Usando as palavras que décadas antes havia ouvido dele mesmo, completou: "mas não tenho medo; deixo agora para você a minha dádiva".

- Agora, agente K! Este é o momento!, gritou o líder operacional do controle cronal.

Ao terminar de dizer esta frase, Terêncio olhou para dentro dos olhos da criança a sua frente, sorvendo com a visão o brilho do que já

havia sido. E deixou transbordar de si, como havia aprendido com aquele velho russo barbudo, todo o seu conhecimento. A criança tremeu. O pai se aproximou.

Neste momento, o agente K imobilizou o velho senhor Thorquemada Smith. O pequeno Terêncio ouviu (e o velho Terêncio finalmente, depois de toda uma vida, o disse): "Só me resta fazer o que já está feito há anos".

As palavras, imagens e odores foram captados pelo sequencer cronal do agente K. "Atenção, contrôle cronal K-45739*576##4, a situação está sob controle. O momento único foi registrado no sequencer. Preparando os beats de caos e os compassos temporais para entrar no modo loop perpétuo".

- Está feito, disse "Druída", anos depois. "Eu posso sentir a mudança-confirmação-do-que-já-era na linha cronal".

Carregando um módulo do seu sequencer, o agente K se afastou da cena e daquele momentum, já devidamente em loop. Atrás dele, uma criança e um homem de meia idade se encontrariam eternamente. O novo sempre alimentando o velho, que por sua vez recriaria o novo e a si próprio.

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- Projeto Serpente Mordendo a Própria Cauda concluído com êxito, senhores, disse o agente K ao chegar ao contrôle cronal.

- Prefiro chamá-lo de loop downtempo, K. A palavra "tempo" aqui se aplica cronal e ritmicamente.

- Não entendo, senhor, mas, de qualquer forma, aqui está o módulo sequencer.

- Obrigado. Elaine, leve-o para o Dr. Elijah. Ele deve estar a esta hora na câmara de passagem.

- Senhor..., disse a médica cronal, com surpresa.

- Eu sei que você nunca esteve nela, Elaine. Está tudo bem. Nossos amigos a esperam.

Elijah ouviu uma batida na porta da câmara. "Druída" fez com a cabeça um sinal para que atendesse. Elijah caminhou até a entrada e abriu a porta. Elaine entregou-lhe o módulo sequencer, com um gesto involuntariamente engraçado, que demonstrava o quanto ela estava perturbada por vislumbrar os M's.

- Obrigado, Elaine. Pode ir agora.

Caminhou de volta até onde estava o trio e disse ao agente Carter:

- Aqui está, doutor. O módulo sequencer.

Observando o módulo nas mãos de Carter, contendo o momento final - e agora loop infinito - da vida de Terêncio Smith, "Druída" disse: - É uma pena que o próprio Terêncio tenha sido usado para sacrificar a si mesmo.Ele realmente foi ao passado para sanar um caso de loucura. Só não sabia que era o seu próprio.

- Nem que ele mesmo seria o causador de sua loucura, protestou Elijah. - Acho que a insanidade aqui pertence unicamente a vocês.

- Tudo já estava feito, doutor Gucci. Há anos. Somente utilizamos o que já estava escrito a nosso favor. Além do mais, todos havíamos concordado que os anos ininterruptos de viagens às mais impressionantes fossas da feitiçaria haviam tornado Smith um homem completamente insano. O que importa é o módulo sequencer e nosso querido Carmichael aqui.

Carter sentou Carmichael em uma poltrona e disse (tanto para o prisioneiro quanto para si mesmo): - Você é LeRoy Carmichael, terrorista temporal procurado em quatro linhas possíveis (e destruidor de todas elas, em linhas possíveis possíveis). O que tem a dizer em sua defesa?

- Isso é ridículo!, esbravejou Elijah. - O homem está sedado muscularmente!

- Ora, doutor... Bem-vindo a Intempol!, disse "Druída".

- Doutor José Carter O'Reilly registrando, disse o médico da Prisão em seu loborecorder. - Hoje é 14/06/plano 75-linha principal. À minha frente está LeRoy Carmichael, um dos prisioneiros mais perigosos do complexo penitenciário Henry Armstead-Gonzalez. Estirpado de seu tempo, ele tem aguardado em sua quanto-cela por tempo impossível de ser calculado, à espera de julgamento e sentença. O julgamento ocorreu no que poderíamos classificar como "ontem". Para efeitos médico-jurídicos, gravo agora seus momentos finais como ser humano dotado de raciocínio linear e progressivo.
Ao dizer estas palavras, Carter desencaixou dois pequenos cabos do módulo sequencer e, distendendo-os, colou suas pontas nos lobos frontais de Carmichael.

- Dando início à experiência de funcionamento do módulo sequencer.

Este módulo, protótipo número 3, foi utilizado pelo agente K para capturar em loop temporal imutável a vida do agente especial clinicamente condenado Terêncio Smith. Estou agora processando a vida de Smith em uma única série de bits orgânicos, contando um resumo de sua vida, repetida instantaneamente infinitas vezes sob a forma de loop provocado. Eu, agente-médico nível 4 Carter, estou agora assumindo a fase final da experiência-sentença.

Elijah olhou para o lado e viu "Druída" sorrir de uma forma que lhe pareceu tola e irritantemente ilógica.

Carter Continuou:

- Movendo estes buffers, transformo agora o módulo sequencer, já plenamente carregado com um loop vital, no nosso primeiro Gerador de Déja-Vu.

- O primeiro de uma série, com as graças de Samhain, disse "Druída".

O recém-convertido Gerador de Déja-Vu mugiu e começou a tremer.

Carmichael não esboçou reação, embora os conectores brilhassem com a transmissão de memórias induzidas.

- O prisioneiro LeRoy Carmichael demonstrou possuir um Q.I. de 270 pontos, continuou Carter. Aliado às suas idéias de unificação dos multiversos, isso faz dele um homem muito perigoso. Se o novo Gerador de Dèja-Vu der certo, Carmichael estará, em instantes, finalmente cumprindo sua sentença: preso em um micro-loop artificial. Não um loop temporal, o que seria muito caro de manter para um prisioneiro ainda vivo, mas um loop mental. Suas idéias deixarão, finalmente, de ser avançadas e ele se comportará como um inofensivo portador de amnésia aguda, lembrando-se somente dos últimos cinco segundos imediatamente anteriores. E sempre terá a impressão de já tê-los vivido. Essa sensação de Dèja-Vu o impedirá de desenvolver novas idéias e tampouco raciocinar sobre sua própria condição.

Minutos depois, o Gerador parou de tremer. Carter desconectou os cabos da cabeça de LeRoy.

- Está terminado.

"Druída" se aproximou.

- Se importa se verificarmos, doutor?

- Claro que não. Vá em frente, respondeu Carter.

"Druída" abaixou a cabeça em frente a LeRoy e desligou o inibidor muscular.

- LeRoy Carmichael. Quem é você?

O prisioneiro abriu a boca ressecada e balbuciou: - Está terminado.

Se importa se verificarmos, doutor? Claro que não, vá em frente.

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