sexta-feira, 14 de novembro de 2008

O Olho do Cavalo Morto: um conto a dez mãos

Parte um: Ascensão e Queda
Octavio Aragão, 20/01/2002.

"A coisa mais digna é a que satisfaz ao melhor sentido"
"Ocorre que, quando a razão falta, certamente tomam o seu lugar os gritos"

Leonardo DaVinci

Tudo escuro, mas o cheiro de fumaça vem por baixo, junto com o vento quente. Os gritos estão ali também, indistintos. A única voz pertence ao Boca, o sujeito com o estoque - colher com cabo afiado até se tornar uma navalha - espetando minha costela.

- Esse corno vai morrer também, tô falando! Ou deixam a gente sair ou ele morre agora!

A penitenciária de segurança máxima Bangu II estava em todas as TVs. Helicópteros sobrevoavam e eu era o ovo em cima do muro, a vinte metros de me tornar um borrão.

Antes de mim, duas irmãs foram jogadas daqui de cima. Eu vi. Agora não vejo nada. Enfiaram uma camisa suja em minha cabeça. Não sei bem por quê. Qual a diferença para eles se enxergo ou não? Acho que é mais uma questão de cumprir os clichês da mídia do que misericórdia com a vítima. Na TV fica mais estético executar as pessoas quando estão vendadas. O público não gosta de ver o rosto dos mortos. É mais fácil matar bonecos. Se a audiência não perceber que ali está uma pessoa, um rosto com boca-nariz-olho-pendurado-da-cabeça-esmagada, fica pressionando para que a situação se resolva de forma rápida. É o que dizem. Eu só queria saber se os caras que arquitetaram esta rebelião pensam nessas bobagens. Eu penso, claro. Porque não tenho mais nada o que fazer aqui, no topo de um muro que de um lado pega fogo, e do outro abre a boca para me engolir.

Espetam minha costela mais uma vez. O Boca está nervoso. Já havia dito que não queria me matar, mas que ia acabar tendo de fazer, que essas negociações eram foda e que ninguém ali tinha nada a perder, que ele mesmo estava com AIDS e não duraria mais um ano naquele inferno. Perdido por um, perdido por mil. Eu disse que compreendia, que não precisariam matar ninguém, que tudo daria certo. Menti descaradamente. Não sabia de nada, sou apenas um padre. Um padre burro, daqueles que acreditam em tudo, até em Deus, e que estava ali numa missão de conforto no momento em que a rebelião explodiu.

Meu sapato resvala, vou cair agora. Não. Boca me segura pelo braço e, ao mesmo tempo, perfura minhas costas uma terceira vez. Nunca saberei se foi de propósito. Posso ouvir a multidão transformando o burburinho num "oooooooohhhhh...!", misto de antecipação e euforia diante do número do trapezista. O equilíbrio restante se vai. Rodopio e caio de costas, pernas abertas, mãos amarradas, a venda se desprende de meu rosto o suficiente para que veja por entre as dobras do pano os olhos arregalados do Boca, num reflexo, tentando ainda me segurar, desajeitado.

Atravesso a fumaça.

O impacto foi mais suave que eu esperava. O calor é substituído por uma brisa de ar condicionado. Demoro para abrir os olhos. Esperava qualquer coisa, do Deus de Michaelângelo apontando o dedo acusador e discursando sobre as vezes em me masturbei pensando em minha irmã até uma formiga gigante, com antenas em forma de garfo. Tudo, menos um beijo na boca.

De um homem.

Engasgo e empurro o rosto. O gosto de tabaco e a barba mal feita do sujeito de seus trinta e poucos anos causam repulsa imediata. Então é o inferno, sem dúvida, porque grito e minha voz não é a que conheço.

- Desculpe por isso, - diz o indivíduo com um sorriso - é que não pude resistir.

A sala é escura e não enxergo paredes ou qualquer outra coisa. Caio da maca onde estou deitado e carrego uma floresta de fios, tubos e sondas. Não consigo levantar, desabo de cara no chão e machuco o queixo, quase mordendo a língua. Levo a mão ao maxilar e, num primeiro momento, não estranho a ausência de barba. Grito outra vez.

- Calma aí - Diz o homem - Você ainda se machuca seriamente. Vamos esclarecer algumas coisinhas agora - e puxa uma cadeira estofada de curvim preto onde senta com o encosto virado para frente.

- É, padre, eu lhe dei uma segunda chance. Infelizmente, algumas coisas nunca mais serão as mesmas para você - e dizendo isso, tira um estojo compacto de maquiagem de dentro de uma bolsa feminina que está a seu lado, abre e vira o espelho para mim.

Os cabelos em duas cores, castanhos nas raízes e louros nas pontas, emolduram o rosto oval, pequeno - com olhos grandes, castanhos, de cílios longos e boca pequena que, não fosse o hematoma começando a ficar rôxo próximo ao queixo, seria sensual - que está ali no espelho, olhando perplexo para mim.

O corpo, pequeno, mas bem proporcionado, veste um tailler preto-azulado e, na altura do peito esquerdo, um crachá diz:

INTEMPOL
Nível 3
Mariete Reis


Parte dois: Ad Mortem Festinamus
Ernesto Nakamura, 23/01/2002.

Graças a Deus, já fui leitor de Ficção Científica.

Assim, o oficial Carlos "Vira-Lata" Martins economizou horas de explicações. Eles eram policiais do tempo. E eu não deveria ter morrido. E Graças a Deus, eles pretendiam corrigir este terrível erro.

E trocaram minha mente com a da agente. Eu estava tão calmo com tantas revelações inacreditáveis que comecei a desconfiar de mim. E o agente tinha a mania de adivinhar meus pensamentos...

– Não, Padre, você não deveria ter morrido lá, pelo contrário, você deveria ter sido um dos heróis que teriam impedido um massacre.

– Massacre?

– Sim, padre: veja o que não deveria ter acontecido, mas aconteceu, após sua “morte”. A parede se encheu de imagens. Noticiários.

O corpo despedaçado no cimento. Horror. Levei cinco segundos até compreender que via meu próprio corpo, a cena de minha morte. Embora quem morria agora fosse a tal supervisora. Compreendi também que estava drogado para atenuar emoções. Minha mente racional registrava, mecanicamente:

As tropas de choque invadindo o presídio. Mais três reféns arremessados no caos. Fogo.

Os helicópteros registrando o massacre. Execuções em massa.
Cenas de horror exploradas à exaustão pelos abutres televisivos.
Interrupção.

Avanço do noticiário em alguns dias. 1.400 mortos.

– Sim, padre. Mas tem mais: O secretário de segurança, J. R. Flores, assumindo orgulhosamente a responsabilidade pelas mortes. Sua demissão. Sua candidatura a Presidente. Sua ascensão espetacular nas intenções de voto das classes aterrorizadas.

Eleição. Multidões em êxtase marchando com seu nome em bandeiras e cartazes, após anunciar o fechamento do congresso e a prisão e humilhação de todos os políticos opositores" Eu reconheci o padrão.

– Fascismo?

– Muito esperto, padre. Ah, desculpe, vocês da igreja conhecem tudo de totalitarismo, né? Fascismo em tudo, menos no nome. Sim, nas próximas eleições, Flores será eleito. Por seis anos, seu governo assegurará paz e prosperidade, eliminando os descontentes. Depois será derrubado e se descobrirá que seu governo exterminou 22 milhões de pessoas.

– Como Hitler...

– Ah, Hitler não tinha o corpo de publicitários do Brasil! É exatamente isso que iremos impedir!

– Como?

– Bem, alguém que não deveria estar lá estava e empurrou o senhor. Temos que capturá-lo e para isso trocaremos o senhor pelo senhor mesmo, antes do evento, com as informações que estamos lhe passando, para que olhe diretamente quem o matou, assim saberemos também quem foi/será/seria o pretenso assassino e impediremos que tudo isso ocorra. Assim, o senhor será salvo, e, em conseqüência, poupamos o mundo do horror que acabou de testemunhar.

– Olhar? Só isso?

– Sim, padre: instalamos no senhor nosso kit de agentes de campo. Um transmissor de imagens em seus olhos, de sons nas orelhas. Muito, muito pequeno mesmo. O que o senhor vê e ouve, nós também vemos e ouvimos.

– Vocês podem ler meus pensamentos, também?

– Ah, não, padre: esse equipamento é muito caro. Somente pros maiorais...

– Mas..

– Não, padre: Eu não leio pensamentos. Se fosse assim, era só ir lá na prisão e prender o cara, né? É mais simples: sou treinado em metodologia de interrogação do século XXII. Ficamos muito bons em adivinhar o que as pessoas pensam, como reparou..

– Então, é só voltar lá, olhar pra atrás e salvamos o mundo. "E seu emprego também, suponho” pensei comigo. O sorriso cínico do oficial denunciou porque o chamavam de "Vira-Lata"

– Sim, padre, todos se salvam, até os vira-latas.

Nesse mato tinha gato. Parecia fácil demais. O agente era prestativo demais. Pensei no fato da organização ser secreta e ele estar me contando todos os segredos, tão tranqüilamente. Ele percebeu.

– Ora, isso é simples: Primeiro, o senhor é padre e faz séculos que não confesso... Segundo, a partir do momento da correção, tudo que fizemos e falamos se auto-anulará como se nada tivesse ocorrido. Acha mesmo que mandaríamos a supervisora Mariete pra morte? Claro que não! A partir da correção, ela também volta. E sem memórias, pois isso jamais terá acontecido!

– As minhas memórias também somem, quer dizer.

– Exatamente!

Agora fazia mais sentido. Perguntei:

– Bem, se esquecerei tudo, posso ver o que deveria ter acontecido? Queria ver o final feliz...

– Claro! Quem não quer?

A parede iluminou-se outra vez.

O padre refém de novo, momentos antes de cair. Mas não cai. Mais momentos de angústia. Chega o senador do PT, juntamente com outras lideranças dos direitos humanos. Horas de negociação tensa. A rendição dos amotinados. Uma entrevista coletiva com o padre, o senador, o bispo e vários advogados. De repente três sujeitos mascarados aparecem e atiram contra os negociadores.

Tumulto. As cenas do senador com o cadáver do padre em seus braços, tão semelhante às pietás, Maria chorando sobre o corpo de Cristo. São repetidas em todos os canais. As imagens são interrompidas subitamente. O rosto do agente fica pálido, lívido e pálido de novo.

– Ei! Isso... não... Isso também não deveria ter acontecido!

Mesmo drogado, estou chocado demais para compreender tudo que vi. Morri de novo. Vira-Latas aciona algum tipo de alarme. Imediatamente aparecem mais seis oficiais. Registrei: 'apareceram', não vieram. "Alteração cronal em curso! Intervenção imediata!" Eles se entreolham e após alguns momentos de silêncio, desaparecem, um por um, até restar Vira-Lata, que parece estar se esforçando para manter a calma. Percebi que os oficiais se comunicavam sem falar. Obviamente o agente não me contou toda a história sobre a leitura de pensamentos. Sorri, de maneira forçada.

– É, seu padre, como eu disse, somente pros maiorais. Acho que fomos limpar uma cagada e caímos na fossa...

Parte três: "E agora, José?!..."
Cláudio Figueiredo, em 26/01/2002.

Hospital Miguel Couto. Início de uma tarde.

Lembro de uma enfermeira setentona comentar que não entendia como a arquidiocese aceitava padres assim.

Pudera, nas longas semanas desde que acordei do coma a coisa mais suave que elas ouviram sair da minha boca foi um sonoro "merda".

Aos poucos a revolta foi passando e retomei a razão, mas o fato de sentir bagos entre minhas pernas era algo que sabia que nunca ia me acostumar nem esquecer.

Lembrei, amaldiçoando, as últimas palavras do cachorro do "Vira-Lata":

- Esquenta não, você não vai lembrar de nada. Pra garantir já vou deixar teu crachá Nível 5 aqui... Bem perto desse coraçãozinho.

E sem poder reagir, já sob os efeitos dos psicronotrópicos, senti o filho da puta apalpar aquilo que um dia tive de mais bonito.

Felizmente meu coma era desculpa suficiente para eu não lembrar de bispo, arcebispo ou qualquer um dos padrecos com quem "eu" estudei em uma porra da igrejinha de interior...

Embora tudo aquilo me enchesse o saco (sem alusão à minha atual condição biológica), o que mais me intrigava era a pergunta que eu não queria realmente fazer mas na minha atual situação era inevitável:

- Por quê eu não morri?

Segundo o viado do Carlos "eu" deveria morrer e então voltar. Nem lembraria de nada sobre esta merda toda.

Mas nada disso havia acontecido.

O que a gente não faz para subir na vida, pensei.

A situação apavorava a maioria dos agentes, mas para alguém com um pouco mais de visão transtemporal isso não seria empecilho. Embora o fato deles pedirem um voluntário soasse muito estranho a todos ali, a chance de entrar para o time do Nível 5 era algo que eu não poderia deixar escapar, ainda mais já entrando como supervisora. Me livrar daqueles otários... ser uma "manda-chuva", afinal!

Ambiciosa... como me chamava, com um sorriso malicioso, o tarado professor Torres no colegial.

Vagabunda... como diria, com o ódio do álcool no olhar, meu finado pai.

Além do mais não era todo dia que alguém, mesmo no nosso ramo, tinha a chance de morrer e voltar.

Concordando com todos e esperando me livrar daquela situação o mais rápido possível, consegui convence-los de que meu estado era ótimo graças a todas as orações de todos os irmãos e tudo o mais que eu pude lembrar que se associasse a um padre.

Senti um certo arrependimento em matar as aulas de catecismo para dar "umas" com um dos coroinhas, mas fazer o quê?

Agora era tarde demais. E mesmo não falando lé com cré, creio que eles acharam que o melhor mesmo era me tirar dali.

A primeira coisa que pensei ao deixar o hospital foi:

– Sempre quis virar popstar, mas nunca assim!"

A multidão de jornalistas que se acumulou nos instantes seguintes dava para cobrir uma copa do mundo.

Soltei um grito agudo (ou ao menos deveria ser), que fez que muitos duvidassem se o pobre padre não seria uma freira.
Mas depois de tanto tempo em cima de uma cama e com meu futuro/passado fodido nada mais importava a não ser dar um jeito de voltar.

Já no carro puxei uma conversa leve, dizendo que queria saber o que havia acontecido durante meu tempo de coma. Seis meses!

Aqueles beatos devem ter se assustado com o veemente "putaqueopariu", mas creio que foram tolerantes o bastante para alguém que havia ficado tanto tempo entre a vida e a morte.

No meio da minha perplexidade comecei a indagar o que havia saído de errado. Por que ninguém tinha vindo me buscar.
Para alguém acostumado a pensar de maneira atemporal como uma agente nível 4 (ou 5 se eu voltasse e aquele safado do Carlos não tivesse me jogado num engodo), isso era inadmissível.

Ou algo tinha saído muito errado ou eu tinha me metido em uma fria homérica.

Qualquer uma das opções agora não era mais tão importante quanto ha alguns segundos.

O baque pareceu ter surtido efeito. Recobrei a clareza e comecei a colocar os pensamentos em ordem. Sem um cartão e uma caixa eu estava presa (ou preso) e sem nenhuma maneira de voltar... ou não?!

De súbito pedi que me levassem à Candelária pois queria rezar para uma santa que escolhi ao acaso.

– Santa Ana – disse.

– Sant'anna!? – retrucaram como que intrigados.

– Isso! – reafirmei.

Mesmo contrariados, meus companheiros de celibato (isso soaria muito engraçado aos ouvidos de quem me conhecesse) me encaminharam até a igreja.

Não conhecia nenhuma mais perto da Av. Rio Branco, meu real objetivo.

Após termos começado a orar agradecendo as graças da minha cura (essa ao menos foi sincera), aleguei uma indisposição e saí porta afora. Era início da segunda década do século 21.

Já sabia da fachada que a Empresa mantinha em um edifício no centro do Rio, e era óbvio que nesse período essa fachada já estava operacional. A questão era, como acionar a Empresa ao chegar lá? Entrando no prédio, pomposo para os padrões da época, me deparei com á dúvida.

E num misto de sem saber o que fazer e desespero me apresentei ao recepcionista.

– Supervisora nível 5 Mariete Reis, eu gostaria de entrar em contato com escritório da Empresa.

Para minha surpresa o senhor de aproximadamente sessenta anos de idade, não achou nada estranho a minha afirmação, principalmente vindo de um padre barbado.

– Pois não senhora Mariete, alguém já estava a sua espera.

Após um telefonema e alguns minutos, nova surpresa: apesar de ser mais do que óbvio que essa seria a situação, não acreditava que aquele puto tivesse a cara de pau de aparecer na minha frente.

– Carlos, seu desgraçado, não acr...

Antes que pudesse completar qualquer que fosse a frase, a imagem que veio a seguir me emudeceu.

Caminhando atrás do Vira-Lata estava uma bela mulher dentro de um tailler preto-azulado.

Antes que eu pudesse recobrar os sentidos fomos apresentados:

– Mariete, padre Pedro; padre Pedro, inspetora Mariete.

E senhores, ou devo dizer senhoras, como podem perceber estamos com grandes problemas.


Parte quatro. "Não Estamos Sós"

Artur Vecchi, em 30/01/2002

O efeito das drogas que injetaram em meu novo corpo já estava indo embora e isso me permitia começar a pensar no que me havia acontecido. Tudo muito estranho. Pensei em orar ao Pai pedindo forças para vencer essa situação terrível, mas logo desisti. Se Ele me deixou cair nesse tipo de desgraça era porque já não havia salvação para minha alma e este era meu inferno particular.

Fazia sentido, então, estar preso em corpo de mulher. Muitos sentidos.

Visão, audição e, principalmente, tato.

Foi quando percebi um peso no peito e ao mesmo tempo uma sensação de contrição. Olhei pra baixo e vi meus seios apertados por um sutiã. Passei a mão neles. Senti algo que não devia.

- Minha santíssima Nossa Senhora, protegei-me, não me deixe pecar! Olhei para baixo para onde sentia um vazio...

Recapitulando: há alguns minutos, eu era um padre dando extrema-unção em um presídio de segurança máxima, até ser pego como refém e morto por uma rebelião. Fui salvo por um agente de uma tal Intempol, que disse ter trocado minha alma com uma supervisora Mariete. Também comentou algo sobre policia do tempo e aquilo não ser o meu futuro e, então, pedi para saber qual seria meu destino e vi que seria morto novamente.

Seguiu-se uma confusão que não compreendi totalmente apesar das pilhas de livros de ficção científica que li. O agente Carlos pediu licença, falou em algo como esgoto, fossa, digitou alguns números no que lembrava uma pequena caixa, passou um cartão e seu corpo pareceu piscar no espaço. Num momento ele está presente, no outro não está mais, e, por fim, está novamente, mas sua aparência é ligeiramente diferente de segundos antes. Algo descabelado, amarfanhado.

Sem entender direito o que aconteceu, ouço o Agente Carlos perguntar.

- Olá outra vez, padre Pedro. Demorei muito? Tive de dar um pulinho ontem para me certificar daquilo que assistimos na projeção. Nem sempre as coisas são o que parecem. Aliás, aqui, nunca são! Vamos precisar adiantar nossos planos e você me acompanha na reunião que teremos agora.

- N-n-não... gaguejei ainda desconfiado de minha nova voz aguda.

- Espero que esteja confortável aí na Mariete, porque vamos partir imediatamente. Uma das coisas que me incomodam em trabalhar para a Empresa é que a gente nunca tem tempo pra nada - exibiu um sorriso amarelo, como se o que disse tivesse alguma graça. Empurrou-me por uma porta até um corredor branco e imenso, cheio de pessoas vestidas como ele, com ternos pretos ou azuis muito escuros - Gostaria explicar algo que não falei anteriormente: além da Empresa aqui existem alguns grupos que também possuem tecnologia de viagem no tempo. Alguns optam por versões de nosso maquinário, mas tem uns sujeitos... ah... tem uns caras que usam coisas realmente do outro mundo!

- E o que eu tenho a ver com isso? - perguntei, esperando que a resposta fosse "nada", enquanto era empurrado no meio daquela multidão em vai-e-vem descontrolado.

- É que eu lancei mão de tecnologia ilegal para te transportar para o corpo da Mariete e parece que os caras de quem peguei emprestado esse equipamento estão meio aborrecidos.

- Mas por que você está me contando isso?

- Bem, é que o agente Carlos caiu numa armadilha e não resistiu. Morreu depois de passar os seus últimos anos no corpo de um tetráplegico surdo-mudo - Carlos apertou meu braço com força redobrada, enquanto acelerava os passos, quase correndo em direção a uma das inúmeras portas existentes no corredor.

Começo a ficar assustado e tento resistir à força do homem que disse se chamar Carlos. Mas faço isso ainda tendo em mente meu corpo original. O resultado é nulo e continuo sendo empurrado até entrarmos em uma outra sala, desta vez, branca e cheia de pessoas vestindo macacões amarelos, aparentemente muito pesados. Todos me encaram sem surpresa assim que adentro a sala. Carlos fecha a porta atrás de mim e fala:

- Padre Pedro, bem vindo à nossa célula infiltrada! Aqui a gente resolve todas as cagadas históricas - de um jeito ou de outro. E o melhor é que os donos da casa nem sabem que estamos aqui!

Os homens de macacão amarelo dão uma gargalhada em uníssono e meu companheiro continua a falar, com um tom sibilante.

- Para um "cavalo morto", até que você é bem esperto padre. Na verdade o meu codinome é Companheiro Falcon e você saltará comigo. Os companheiros Bob e Ken ficarão nesses corpos, esses "cavalos", em nossos lugares e darão prosseguimento ao plano.

O agente Carlos que não é o agente Carlos, muda o foco de sua atenção para o próprio pulso e fala algo em seu relógio:

- Barbie dois para saltar...

E então percebo que não estou mais na sala branca.

Avenida Rio Branco, nº1. Centro, Rio de Janeiro, RJ.

No meio do corredor branco, entre dezenas de agentes da Intempol, um casal se encontra frente a frente.

- Vamos, Ken? - pergunta o homem - Temos um encontro com a verdadeira Mariete no corpo do padre Pedro. Toma ai o seu cartão - e passa furtivamente, mas com certa violência, um cartão cronal para a mulher.

- Calma aí, porra! Num apressa, não! Você sempre fica com a melhor parte. Por que sou sempre eu que pego esses corpos de mulher? Eu odeio ter que mijar sentado. Não é você que está tendo que andar de saia e salto alto. - e apontando para a perna, completa - Viu só? A meia calça está desfiando!

O homem ignora os resmungos femininos e saca seu próprio pedaço de plástico prateado.

Os cartões cronais são passados em suas respectivas caixas e os dois companheiros desaparecem apenas para ressurgir na segunda década do séc. XXI, prontos para o encontro com a supervisora Mariete, presa dentro padre Pedro.


Parte 5 - Mercúrio e Vênus
Alexandre Mandarino, em 07/02/2002

O silêncio tomava todo o cômodo. Carlão adorava aquele lugar. Podia ler, escrever, pesquisar, jogar e desenhar em paz. Isso quando não estava tentando arruinar os planos da polícia temporal. Mal veio à sua mente a brevidade de seu descanso e o telefone tocou.

- Sim, a-gente Carlos Silva falando. O que é agora, Henrieta?

Uma voz aguda - transformada em algo ainda mais estranho pela péssima qualidade da linha telefônica - respondeu do outro lado:

- O que mais pode ser, Carlão? Mariete e o padre Pedro, claro.

- De novo? Isso já está ficando ridículo.

Carlos fechou o livro que estava lendo (um dicionário ilustrado de mitologia grega - droga, e logo agora que ele estava lendo sobre o filho de Mercúrio e Vênus), vestiu o casaco e caminhou até a porta. Minutos depois, estava na sala do Assíncrono. Respeitosamente, entrou e sentou-se em frente à mesa do ancião.

- O que aconteceu, senhor?

- Mariete e o padre Pedro ainda estão vivos. O que mais poderia ser? - respondeu o velho, com um sotaque carregado. Avi Alamed era o Assíncrono há tanto tempo que nem mais se lembrava de como havia começado. E, para ele, era uma perversa ironia sofrer a passagem do tempo.

- Mas... como? - espantou-se Carlão. - Senhor, eu fiz o possível, fiz de tudo para que os planos dos agentes temporais fossem por água abaixo.

- Eu sei. E até arrisco afirmar que a Intempol nem precisaria de nossa "ajuda" para fracassar. Mas, como sempre, a empresa está acertando, mesmo que por razões completamente fora de seu controle.

- É sempre assim com eles, senhor. São corruptos, ignorantes e trapalhões, mas acertam. Sei lá como, conseguem ser bem-sucedidos em algumas missões.

- Caos. - respondeu Alamed. - Eles dão sorte com o Caos. Mas isso não pode durar, sabemos que não. O padre Pedro deveria ter morrido. A Intempol afirma que sua morte foi um engano, mas isso é ridículo. Não existe o tempo. Logo, não existem enganos.

- Tentarei novamente, senhor. Fiz tudo ao meu alcance para que as tentativas anteriores de "consertar" a trajetória temporal do padre dessem errado. Ainda assim, ele continua vivo. Como eu disse, a Intempol acerta mesmo quando erra.

- Já ouvi, a-gente. - disse Alamed, irritado com o elogio involuntário à organização rival. - Mas, como disse, sorte e acaso são facilmente revertidos. Você é um dos nossos melhores a-gentes, Carlos. Faça o que sabe fazer. O padre Pedro deveria ter morrido. E a meretriz barata que trocou de corpo com ele deve ser despachada também. É um bom recado para a Intempol. Parta, Carlos, e volte com boas notícias. Tente de outras maneiras, mude a abordagem, sei lá. Mas tenha sucesso. Tempus Fugit.

- Tempus Fugit.

O agente temporal Weber Souza olhou para o rosto do padre Pedro. Quer dizer, olhou para os olhos da superintendente Mariete. E suspirou.

- Bom, não sei por quê tive que herdar essa trapalhada final do Vira-Latas, mas vamos lá. Mariete, você deveria morrer - em cronossimulação, claro - no lugar do padre. E continua viva, no corpo dele. Padre Pedro, o senhor deve permanecer vivo. Mas, por mais que tentemos, tudo dá errado e o senhor embarca em uma realidade onde sempre morre. Chega. Não adianta manter esse padrão de ação. Me chamaram para resolver essa situação de vez.

- Graças ao Senhor, agente Souza. - disse o padre Pedro. - Não sei se suportaria me ver "morrer" mais uma vez.

- Porra, tá reclamando de quê, padre? Quem tá morrendo sou eu - corrigiu Mariete.

- Sim, madame, mas no meu corpo.

- OK, chega - interviu Weber. - Não adianta ficarem discutindo. Vou resumir os novos planos: voltaremos para a realidade principal (se é que podemos chamar aquela zona assim) e tentaremos resolver tudo por lá. Padre, o senhor continuará no corpo de Mariete, enquanto ela "morre" no seu lugar. Depois de tudo resolvido, vamos esperar a poeira baixar e depois destrocamos os corpos.

- Graças a Deus! - exclamou Pedro.

- Ué, tá reclamando de quê, padre? Eu sou nova, o senhor pode se divertir muito aí nessas carninhas. Pior sou eu, que tô aqui nessa carcaça. Já pensei em tudo, até em mulher, pra vocês terem uma idéia do meu desespero, mas não consigo fazer esse negócio subir. Padre, o senhor...

- Chega, Mariete! - gritou o agente Weber - Chega! Isso não tem realmente a menor importância!

O silêncio voltou à sala. Afinal, Weber Souza era um Nível 5. Mariete achou melhor ficar quieta. Era Weber quem iria fazer a morte do padre Pedro, quer dizer, a sua morte no corpo do padre Pedro, "desacontecer" - se tudo desse certo dessa vez. Weber limpou a garganta e disse:

- Bom, voltando aos planos. Mariete, você "morre". E vai morrer, porra, nem que nós tenhamos que subir pessoalmente naquele maldito muro daquela prisão de merda, amarrar uma bigorna nos seus pés e jogar você lá de cima. Essa missão simplesmente não pode sofrer mais nenhuma falha! Não pode, entendeu?

- Tá, eu tento morrer dessa vez, ué. - Mariete deu de ombros.

- Continuando: depois disso, damos um tempo pras ondas se acalmarem e destrocamos os corpos. Aí o padre Pedro pode voltar à sua vida normal, na realidade de onde veio, só que em um momento acrítico.

- Ahhh... - interrompeu o padre, gemendo. Seu rosto estava pálido como uma vela. - Acho.. acho que fui atingido na última tentativa. Vejam... estou sangrando. - Mal terminou de falar, padre Pedro levantou a mão direita. Seus dedos estavam cobertos de sangue escuro, quase negro. Mariete levou às mãos ao rosto e disse:

- Padre, o senhor me surpreende. Que dia é hoje?

- Eu não sei, mal posso dizer em que ano estamos após toda essa balbúrdia que me fizeram passar, como posso saber que dia é hoje? - respondeu padre Pedro.

- É dia 21 - respondeu Weber - O que isso tem a ver?

- Tem a ver que é melhor levarmos o padre até a enfermaria. - disse Mariete - Com certeza eles têm O.B. por lá.

Carlão caminhou pensativo pelos corredores. Estava começando a se irritar com essa missão. Dessa vez, o padre e a tal agente morreriam. Ponto. Não haveria erro. Voltou ao quarto e pegou a maleta. Abriu-a e conferiu. Estava tudo lá: a cópia clonada do cartão cronal, a máquina registradora de engenharia reversa criada pelo Assíncrono, tudo. Mas resolveu utilizar outra abordagem, como Alamed havia aconselhado. Afinal, se queria se firmar como uma organização atemporal, a Tempus Fugit precisava de mais algumas intervenções bem-sucedidas. Foi quando Carlão olhou para a capa do livro sobre a sua mesinha de cabeceira.

- Bom, o negócio é o seguinte - disse Weber - Estamos tentando lidar com isso em linhas paralelas de tempo. Por isso está dando errado. Tive uma idéia, que já deu certo anos atrás, no caso do Coala de Cristal. Vamos usar linhas perpendiculares. É difícil, mas já pedi aos homens de branco e o Geômetro em pessoa vai cuidar de tudo. Ele desenhou as novas linhas e já alimentou o banco de dados central com elas. É só passarem seus cartões cronais nos alimentadores e eles serão reprogramados com o novo trabalho do Geômetro. Mole. Tudo foi checado e rechecado, visto e revisto. Não tem como dar errado dessa vez.

- Só não vão esquecer de me "desmatar", hein? Já basta morrer antes da hora, ainda mais morrer nesse... ah, esquece - disse Mariete.

- Mariete, minha querida - disse Weber. - Entenda: não vou esquecer de trazer uma mulher tão adorável de volta à vida. Fique tranquila.

- É, diz isso pro Jonas. - emendou Mariete. - O cara entrou nessa naquela confusão toda do Moriarty e agora ninguém na Intempol nem sabe se o cara morreu mesmo ou não. Nem tem como trazer o cara de volta. A merda foi tanta que nem sabem se algum dia ele chegou a existir.

- Aquilo foi uma exceção, Mariete. Vamos, o Geômetro está nos esperando.

Enquanto caminhavam, padre Pedro fez o sinal da cruz. Que aquele Calvário terminasse, enfim.

Mal entraram na sala e o Geômetro pediu que se sentassem.

- Bem, creio que este imbroglio terrível se conclui aqui - disse o cientista. - Mariete, Weber me disse que tem dúvidas quanto à eficácia desta missão. Dê uma olhada no cronomapa digital: as linhas perpendiculares são você e o padre Pedro. Você voltará para a prisão, mas já em pleno ar. Cairá no chão e "morrerá". Padre Pedro, desta vez o senhor ficará bem longe. Enquanto Mariete morre, Weber e eu o enviaremos para o mesmo momento, só que em uma linha temporal perpendicular. Não tem como dar errado.

- E como é essa linha perpendicular? - perguntou o padre Pedro.

- Bem... - pensou o Geômetro. - Não podemos afirmar com certeza. Mas é uma realidade na qual o senhor e Mariete não existem. Tudo foi planejado nos mínimos detalhes. Somente após a morte de Mariete o senhor voltará para a nossa realidade, mas longe da prisão. Seu cartão cronal já está pré-programado para isso. O máximo que sofrerá será uma leve amnésia. Talvez não se lembre das últimas seis horas, mas isso é tudo.

- Bem, - o padre respirou fundo. - que Deus nos abençoe desta vez.

Estalando, o cartão cronal clonado de Carlão Silva deixou o a-gente na sala do Geômetro. Em uma frequência ligeiramente mais atrasada que a vigente na base da Intempol, Carlão não podia ser visto. Mas seus aparelhos funcionavam. As palavras do Geômetro chegavam como ruído branco aos seus ouvidos:

- Bm, cr q st mbrgl trrvl s cncl q. Mt, Wbr m dss q tm dvds qnt fcc dst mss. D ld n crnmp dgtl: s lns prpndclrs s vc o pdr Pdr. Vc vltr pr prs, ms j m pln r. Cr n c "mrrr". Pdr Pdr, dst vz snr fcr bm lng. nqnt Mrt mrr, Wbr nvrms pr msm mmnt, s q m m ln tmprl prpndclr. N tm cm dr rrd.

Carlão abriu a maleta e pegou seu Verme Rearranjador. Mais uma das criações do Assíncrono. Posicionou a pequena caixa de metal embaixo do servidor que mostrava as linhas perpendiculares. Girando o dial lentamente, Carlão moveu as duas linhas até que se tornassem curvas. Então, fez a linha da direita girar alguns graus e, voilá: uma perfeita interseção. Guardou o Verme em uma maleta e, enxugando o suor da testa, saiu da sala.

Sob as ordens do Geômetro, a equipe de viagens enviou Mariete e o Padre Pedro para seus destinos. Weber olhava toda a operação, com um ar sério. Geômetro, com um ar tranquilo, abriu a boca para falar algo, mas a Cartógrafa-Assistente Marta começou a gritar:

- Não é possível! Senhor, veja isso. As câmaras de recepção estão brilhando. Eles estão voltando para cá!

- Não pode ser - espantou-se o Geômetro, enquanto Weber arregalava os olhos - Isso está errado. Eles só voltariam para cá se suas realidades de destino não existissem, mas elas existem. Checaram os cronolábios?

- Sim, senhor - disse outro assistente - Está tudo certo.

- Senhor - interrompeu a assistente Marta. - Está terminado. Eles voltaram.

Abram as câmaras - ordenou o Geômetro.

Marta correu para a câmara 614. Rodou a fechadura, abriu a porta e... nada.

A câmara estava vazia.

- Meu Deus, Geômetro - berrou Weber. - Não vai me dizer que o padre Pedro morreu.

O outro assistente abriu a câmara 615. Lá estavam eles. Quer dizer, lá estava ele.

Ou ela.

Uma figura magra e alta, de cabelos compridos, saiu da câmara. Vestia o avental branco que se ajustava automaticamente a quem retornava das missões. Mas foi quando ela falou que todos se arrepiaram:

- O que aconteceu comigo? - disse uma voz que alternava entre o agudo e o áspero - Puta que pariu / Meu Deus, o que vocês fizeram?

Os cabelos compridos e grisalhos balançavam enquanto a figura, em desespero, se movia. Weber estava paralisado, de boca e olhos arreganhados.

Geômetro finalmente disse:

- Não... acredito...

- Senhor, os dois foram reescritos. - Disse a assistente Marta. - Pelas leituras cronais, o padre Pedro nunca existiu, tampouco a superintendente Mariete. Somente esse ser existiu, em todas as realidades.

- Senhor/Caralho, vocês juntaram a gente/nos juntaram em um só ser/na mesma merda. Cristo/Não tô crendo, eu não consigo parar de pensar nessas obscenidades/merdas de cristão cagão.

Quando Weber começava a pensar no que fazer, a porta se escancarou com força. Tiros de Uzi varreram a sala. Os últimos pensamentos do agente Souza foram para a sua filha. Geômetro ainda tentou calcular a trajetória da bala que explodiu na sua testa. Marta e o outro assistente caíram ao chão, cobertos de buracos. Padre Pedro/Mariete abriu/abriram a boca de espanto e se abaixaram com medo.

- Pelos Milagres do Senhor / Merda, agora fodeu de vez, quem é você? Você matou todos eles / todo mundo.

- Sou um a-gente. Tempus Fugit! E vocês agora são o filho de Mercúrio e Vênus, o rebento de Hermes e Afrodite. E vão morrer com um teco na cabeça. Repitam comigo: o peito do pé do Padre Pedro é preto.

Parte 6 - Boca
Octavio Aragão, em 14/11/2008

Meio-dia no pátio da penitenciária Bangu 2. Sol a pino.

O Boca está sozinho num canto esperando o contato. Um dos guardas se aproxima e estende o pacote. Boca tenta pegar, mas o guarda afasta a mão antes do bandido relar o dedo no papel amarrado com barbante.

Depois, lentamente, o guarda aproxima o pacote mais ou menos do tamanho de uma caneta até as mãos ávidas do detento.

- Tá aqui. Vê lá o que vai fazer, seu merda - disse enquanto disfarçava, olhando por cima do ombro.

- Não fode, babaca - respondeu Boca - Já recebeu a tua, né, não? Então não se mete e some daqui antes que eu dê um jeito com os home e tu acabe com a boca cheia de formiga.

O guarda arreganhou os dentes e ameaçou puxar o cassetete.

- Vai, - desafiou o Boca - tenta me acertar aqui, eu com essa parada na mão, vai! - e, diante da desistência do adversário, completou sussurando entredentes:

- Cagão. Tu é um merda, mermo.

- Dia desses a gente se acerta, Boca - disse o guarda enquanto se afastava.

- O que é teu tá guardado.

Boca riu. Um riso reto, parecido com a lâmina que tinha agora em mãos, escondida dentro das calças e ainda embrulhada no papel.

- E o que é teu tá guardado aqui, ó - e apontou para a própia virilha.

***

A mensagem no papel era simples e direta.

Pega o padre. Quando chegar a hora, mata duas freiras, mas segura o sujeito. Leva pro muro, mas não deixa ele cair de jeito nenhum

Não tinha assinatura, mas era como se tivesse. Quem escreveu aquilo usou batom vermelho em papel jornal. Foi a mulher loura com quem falou no dia anterior, prevenindo-o a respeito da rebelião que aconteceria na manhã do dia seguinte, quem mandou a mensagem. Ela era bonitona, a vadia. Ele não imaginava quais os motivos para a rebelião, mas sabia que iria entrar numa grana preta, além de assumir o comando das operações internas do presídio, já que o Gordo e o Dedé - atuais chefes do morro de São Carlos - partiriam desta pra melhor, segundo o combinado. Parece que "poderes maiores" estavam de olho na estrutura interna de Bangu 2, e, principalmente, na grana gerada pelos "empresários internos". A rebelião seria a desculpa perfeita para trocar os atuais chefes internos pelos "agentes" dos graúdos, que pareciam ser gente da alta, engravatados e tudo mais. A mulher foi bastante clara... garantiu que ele não se arrependeria de ajudar e que os caras da... como era mesmo? Mendigo? Mastigo? Maguito? Sei lá, uma porra dessas... não esqueciam de quem colaborava direito.

À noite, as coisas começariam a seguir seu rumo.

Os celulares tocaram anunciando a explosão que matou o Gordo e a execução de Dedé,, em plena Avenida Sapucaí, durante o desfile da Estácio. O Boca era o líder da rebelião no presídio a partir daquele momento.

Foi quando um dos guardas botou a mão em seu ombro e disse num tom que apenas ele pôde ouvir:

-Te cuida, moleque. Até agora foi fácil, mas o caldo vai engrossar pro teu lado.

Antes que Boca pudesse responder alguma coisa, o cara sumiu. Desapareceu mesmo. Boca sentiu que seu intestino se rebelava, mas conseguiu controlar. A rebelião estourou conforme o combinado, mas o novo rei não estava mais tão certo se queria o trono.

***

No dia seguinte foi um alvoroço.

Tudo correu como esperado: os religiosos chegaram, foram feitos prisioneiros e começou o incêndio. Até o fim daquele dia, os chefes do crime organizado que se encontravam presos nas penitenciárias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais obedeceriam a um comando central unificado, presidido pela Meggido Incorporações. Era o começo de um novo futuro. Terrível, mas novo.

Para o Boca, porém, havia um detalhe que parecia fora do lugar.

Todos os reféns eram freiras.

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