domingo, 9 de novembro de 2008

Amor Verdadeiro: um conto de Ernesto Nakamura

Amor Verdadeiro (ou: Porque bons agentes temporais não bebem com estranhos)

“Vinde, ó crianças, sob as estrelas, & saciai-vos de amor.
Estou sobre vós e em vós. Meu êxtase está em vosso. Minha alegria é ver vossa alegria.”

Sabará bebia para esquecer. Esquecer de como sua vida era miserável.

Não que fosse, realmente. Tinha um emprego espetacular, além dos sonhos da maior parte dos
mortais de sua época. Bom salário, férias incríveis em qualquer lugar do mundo, à qualquer época, um
plano de saúde que cobria até despesas com ressurreição, mas nada disso substituía uma imensa
insatisfação em sua vida: Era sexualmente fracassado.

Não seria tão ruim, se não fosse colega justamente de Giacomo “Casanova”, o maior conquistador da Empresa. E como as estrelas, que mais brilham em oposição às trevas da noite, Giacomo fazia questão de destacar suas conquistas, ressaltando os fracassos de Sabará. Todas as sextas eram momentos de glória para Giacomo, de inveja para os colegas e inferno para Sabará, mas curiosamente, jamais faltava a estes encontros.

Certa sexta, já bastante bêbados, mais uma vez Giacomo se vangloriou de poder conseguir ganhar qualquer mulher do mundo. Sabará o desafiou, argumentando que nem o maior sedutor conseguiria - todas- as mulheres do mundo.
Giacomo respondeu de pronto, que pelo menos não era como Sabará, que não conseguiria nenhuma mulher do mundo. Todos riram. Mais uma vez, Sabará ficou arrasado.

É justo comentar que Sabará não era tão feio. Infelizmente, era algo de sua personalidade, que nem perfumes nem roupas de qualidade nem etiqueta conseguiam disfarçar. Era daqueles sujeitos "sem graça". Uma mulher, honestamente comentara: Sabará, você me faz pensar em minhocas mortas...

Quando Giacomo caiu em desgraça na empresa, Sabará sentiu certa satisfação, pois achou que era o castigo justo a alguém que pensava pelos testículos, mas breve surgiu uma lenda persistente, que Giacomo, pelos seus delitos, chegara a ser o que diziam ser, Casanova, o próprio, além de vários outros conquistadores famosos, que teria desvirtuado santas, engravidado deusas-mãe da humanidade, “conhecido” todas as figuras femininas famosas da história, de Marilyn a Maria, passando por Joana, causado tal confusão no tecido temporal que tornara-se impossível simplesmente deletá- lo, mas deixar a
historia tal como Giacomo a tornara.

Sabará era competente em seu ofício, e após alguma pesquisa, concluiu que esta lenda era basicamente verdadeira. Até derrotado, Giácomo era muito melhor que ele.

E certa noite, bebia em um muquifo, daqueles onde as putas encerram suas noites, em uma mesa solitária, acompanhado apenas de uma garrafa, de suas memórias e da vontade de morrer. Bebia até ficar inconsciente, como estava se habituando. Estava para desmaiar sobre a mesa, quando percebeu que um homem sentava à sua frente, ainda mais repulsivo que Sabará. Era realmente feio, um velho careca e acabado, mas tinha um olhar poderoso, como o de um hipnotizador, de um feiticeiro, ou de um demônio.

Que diabolicamente, passou a conversar com Sabará.

Apresentou-se como a Besta do Apocalipse, mas podia chamar de Aleister. Sabará, muito bêbado, não o identificou na lista dos 10 mais procurados da Empresa. Respondeu: “Se você é gay. Eu não sou...”

“Não, Agente Sabará, você não é, mas também não gosta de mulheres.”

“O que? Como não gosto?”

“Calma, estou aqui para ajuda- lo...”

“Ajudar, por que? Ninguém gosta de mim...”

“Ah, você é esperto. Eu estou aqui, porque tenho grandes vantagens em ajuda-lo. Melhorou?”

“Tá bom, diga aí, sua Besta, o que você quer...”

“Que beba comigo, de uma bebida especial, que eu preparei somente para esta noite”. E retirou de algum lugar, frascos e duas taças idênticas , e algo que Sabará, se estivesse sóbrio, reconheceria como O Cálice. E verteu uma poeira azulada do Cálice sobre uma taça, onde ajuntou uma calda verde e outra, amarela. Colocou outro copo sobre o primeiro, improvisando uma coqueteleira e sacudiu vigosoramente a mistura, que ficou com um tom esmeralda fluorescente. Com um movimento hábil, separou a mistura em duas porções iguais, uma para cada taça.

“Meu corpo é branco como o leite das estrelas; brilha com o azul do abismo de invisíveis estrelas! Graal, Psilocybin e Soma. Tomai e bebei, pois este é meu esperma”, disse o velho, sorrindo maldosamente. E bebeu de um gole sua parte.

E Sabará bebeu também. Que tinha ele a perder? Tinha gosto de um nada visguento. Podia ser mesmo a porra do velho ou...
Algo em sua mente gritou: "Drogas!"

Sabará tentou reagir, mas o efeito era instantâneo e todas suas percepções pareciam meio sonhadas, e ouviu a voz distante do velho, que sumia em névoa e luz.

"Que os chacais do Dia e da Noite uivem no deserto do Tempo! Que as Torres do Universo cambaleiem, e que correndo fujam os Guardiões! Divirta-se, agente, e encontre seu Verdadeiro Amor.”

Os olhos de Aleister pareciam azuis sobre azuis, depois tudo parecia azul rodopiante e Sabará desmaiou num caleidoscópio de cores e vagas formas esmeraldas sobre sua mesa.

Despertou, assustado. Estava só, de novo, naquele bar de fim-de-mundo e perguntou ao atendente se o vira conversando com alguém. Não tinha.

Apenas bebeu até dormir sobre a mesa, como sempre.

Concluiu que teria delirado aquele encontro.

Então ele entrou.

Era um homem, pelos 40 anos, meio calvo, mal vestido, nem forte, nem bonito, nem atraente. Mas se apaixonaram, assim que seus olhos se encontraram. Compreenderam-se. Eram dois fracassados no jogo da seleção sexual. Mas na profundidade de seus olhares compreenderam-se completamente, o quanto tinham para partilhar, como poderiam trocar felicidade...

Sua educação católica e latina horrorizou-se, mas seu corpo respondeu de maneira possante e constrangedora. Tentou disfarçar o tremor nas mãos, no rosto e os volumes denunciadores e percebeu que o outro também passava pela mesma situação. Constrangido, este sentou na mesa de Sabará, de pernas cruzadas e contorceu-se discretamente, tal como Sabará, para minimizar o desconforto causado pelos reflexos viris exaltados.

Olharam-se e sabiam. Sussurraram apenas, pois se compreendiam profundamente.

“Tu...”

“Não, não sou... Nunca... ”

“Nem eu...”

“Então...”

“Porque?”

“Preciso beber algo, forte”

“Precisamos...”

E beberam, até se esquecerem. Percebeu vagamente que chegaram a sua casa, onde largaram suas roupas e o resto de suas morais e se amaram, profundamente pelo resto da noite. E pelo sábado e domingo.

As semanas se seguiram, e depois, meses. Todas os fins de semana se encontravam, e descobriram muitas coisas a respeito de si-mesmos. Que eram perfeitas almas-gêmeas, torturadas pela incapacidade de relacionamento com as mulheres e humilhação dos colegas conquistadores. Que ambos se consideravam heterossexuais, não tinham nenhuma atração por outros homens, mas no fundo desprezavam as mulheres também, ao mesmo tempo que as desejavam. E enlouqueciam-se quanto juntos. E assim foram felizes, semana após semana.

Seus colegas logo perceberam primeiro sua nova alegria, e depois uma mudança mais profunda.

Mariete foi a primeira que percebeu que Sabará olhava as mulheres como poucos homens olhavam, e o experimentou. E gostou, pois ele tinha aquele algo inexplicável, da loucura dos predadores e dos amigos dos deuses. E como Mariete era discreta, somente após duas semanas todas as mulheres da Empresa sabiam do “novo Sabará”, e passaram a experimenta-lo também. Assim, Sabará tornou-se o sucessor de Giacomo, mas bem mais discreto. Mas Sabará tornou-se mais. Agora, quando falava, todos ouviam. E obedeciam. Sabará ficou impressionado quando descobriu que atraia mulheres, e homens também. Era o novo macho alfa na gaiola de macacos da Empresa.

Seu companheiro riu muito, comentando que o mesmo ocorria com ele, que após se conhecerem, sua relação com as mulheres mudara, e muito. E que muitos homens, quem diria, também. E ambos estavam para serem promovidos, por suas capacidades de liderança, recém-afloradas e reconhecidas.

E assim, por nove meses foram muito felizes. Mas, mesmos os agentes da Empresa, que são um tanto lentos para pensarem, passaram a desconfiar da mudança de Sabará, desconfiança movida por inveja, naturalmente. E alguns colegas seguiram o secretamente após o expediente, para tirarem a cisma.

E descobriram que ele tinha um amante. Riram bastante, como latinos que eram. Já imaginavam as maneiras de contar isso na Empresa, para destruir sua reputação de novo-Casanova, quando reconheceram o homem de Sabará.

Imediatamente, contataram seus superiores, pois era uma claro crime contra a história. Este tipo de contato era proibido, punido até com a Nunca- Existência. Especialmente a esse nível de perversão.

Receberam ordem de prende-los, imediatamente.

Assim, correram até o apartamento de Sabará, arrombaram a porta, entraram no quarto onde estavam se enroscando, e ao perceberem a invasão, gritaram:

“Parem!”

E os cinco agentes pararam, imobilizados, por duas vozes de comando em coro tão poderoso que se ordenassem que pulassem da janela, alguns pulariam, imediatamente.

“Que significa isso?”

O agente com vontade mais forte, conseguiu falar.

“S-Sabará! Você está abraçado com você-mesmo!”

E os Sabará se olharam, e com suas vontades fortalecidas, quebraram o encantamento/charme/hipnose de Alester. Se olharam como espelhos. Poderiam ter enlouquecido.

Poderiam ter fugido, gritando. Mas se compreenderam.

“Deveríamos saber, não é mesmo?”

“No fundo, sempre soubemos... "

"Eu sou você, amanhã..."

"E agora?”

“E agora” foi um festival de degolas, demissões e descomissionamentos na Empresa. A palavra “incompetentes!” foi utilizada tantas vezes que tornou-se parte do nome da divisão latina da Intempol século XX. Finalmente, os Sabarás foram chamados à diretoria.

O representante dos “Deuses”, do "Andar de Cima", francamente desconfortável, explicou a encrenca. Sabará fora vítima de um terrorista temporal incrivelmente astuto. E enquanto a Empresa punia seus incompetentes e gastava seus recursos materiais e humanos corrigindo nove meses de paradoxos temporais ilegais, gerados pela contradição da coexistência dos Sabarás, o criminoso temporal Aleister Crowley ficara livre para agir. E após mais demissões, o agente melhor qualificado para assumir a direção era Sabará, alias, dos Sabarás, que dividiriam o cargo, alternadamente. Foram promovidos por falta de opção.

Assim, Sabará tornou-se diretor. E feliz, pois aprendeu a se amar, a se respeitar e ser autosuficiente.

E dizem que Giacomo, quando soube, comentou:

“Eu sabia que um dia, o Sabará ia se foder...”

-fim-

Observação. Sou o primeiro a admitir que o tema deste conto é parecido com o conto “Paradoxo de Narciso”, de Ivanir Calado, publicado em Isaac Asimov Magazine, nr 16. Juro que não foi proposital...

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