sábado, 5 de abril de 2008

Saída de Emergência: conto da Intempol por Hidemberg Frota

Um dos primeiros autores revelados pela Intempol, Hidemberg Frota é um advogado manauara que acompanha o projeto desde seu início, em 1998, quando tinha por volta de 17 anos. De lá para cá, contribuiu com diversos contos e conceitos para a geléia geral que é a Intempol. Esta é uma de suas contribuições, datada de 2005.

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O elevador chegou ao destino a um palmo abaixo do piso. Enquanto erguia a perna para subir o degrau deixado pela displicência mecânica, ouviu a voz fina mas estridente chamando-o por professor. Professor, professor, professor, a insistência lhe soava familiar, acompanhada do sotaque catarinense, reverberando o contínuo assombramento da forasteira.
- Bom dia, Léia.
- Professor, preciso falar com o senhor - Léia era a única aluna estagiária na Procuradoria-Geral da República que esquecia de trocar o "professor" pelo "doutor".
-As provas, só na próxima segunda.
- Pois é, eu estive na aula de sábado. Na verdade é assunto particular.
- Ainda não conseguimos pagar o atrasado dos estagiários. Só depois do décimo-terceiro dos servidores.
- Mestre, é assunto particular, mas de interesse alheio.
- Cliente do Escritório Jurídico da Faculdade?
- Meu vizinho. Ele foi preso.
- Bebeu?
- Está sendo investigado por terrorismo.
- No mínimo, trinta anos.
- A sentença não foi prolatada. É prisão administrativa.
- Dois meses na certa.
- Eu estou ajudando a escrever o habeas-corpus dele.
- Por quê?
- Fizeram uma busca e apreensão domiciliar na madrugada. Não havia mandado judicial.
- Eu já te disse, Léia, esquece a Constituição do Brasil.
- A prisão não foi arbitrária?
- A prisão foi administrativa. Não precisa de ordem judicial.
- Mesmo à noite?
- Em caso de terrorismo, sim.
- Não há como recorrer?
- Depois de um mês, o preso pode pedir liberdade provisória ao Ministro da Justiça. Não crie expectativa.

***

Suspirou como se expirasse o tédio de perguntas inócuas. Afrouxou o cinto. Afivelava-o como se ainda tivesse pudor em conter a gula. O urubu no outro lado da janela retomava a sessão matutina de contemplação paisagística, rotina diária que recordou Montoro de seu próprio itinerário.
- Zaira, já deixaram a garrafa de café - gritou para o outro lado do gabinete, separado pela porta semi-aberta.
- Já, Dr. Montoro.
- Pega lá pra mim, por favor - pediu, enquanto ligava o navegador da internet.
- Vem cá, a conexão continua daquele jeito? - indagou Montoro, observando a chegada da xícara.
- O técnico disse que é por causa da pirataria.
- Só que eu preciso entregar o parecer sobre aquela questão de quotas para homens em cursos de Direito. Em Portugal o Tribunal Constitucional enfrentou a mesma discussão. Eu preciso fazer o download dos acórdãos.
- Qual o posicionamento deles, doutor?
- De que a quota é constitucional, porque a neurociência já comprovou que as mulheres são mais inteligentes que os homens. Sendo elas a maioria nos cursos de Direito, prevalece a igualdade material: tratar os desiguais na medida da sua desigualdade. Desigualar agora para igualar lá na frente.
O Palácio Cilíndrico balançou no compasso da ventania que afastara o urubu para abrigo mais seguro, fizera o café transbordar para a mesa e silenciar o murmurar do ar-condicionado central.
- Outro terremoto na Venezuela?
- Com esse estrondo, doutor?
- Não foi o transformador que pifou? Ficou sobrecarregado.
- Parece uma explosão - asseriu Zaira, abrindo a porta do corredor, onde esbarrou no militar, que lhe alertou:
- O míssil atingiu o quarto andar. O Tenente Haddad disse pra evacuar.
- Depois desse susto, evacua-se até com hemorróida - completou a secretária, olhando para o chefe.

***

- Vamos por aqui, Dr. Montoro. As escadas estão entupidas de gente - sublinhou o militar, apontando para a Sala de Audiências, que se viu iluminada por três ofegantes lanternas.
- Sargento, vamos abrir essa portona aí. Ela é pesada. A porta do corredor vai ficar aberta e esta também. Assim, quem se lembrar da saída de emergência, não se atrapalha.
- E agora? - perguntou Zaira, fitando o vazio sombrio recém-desvelado.
- Mergulhemos - empurrou o Sargento Messias e a Dona Zaira, cujo grito de desespero se viu amortecido pelos colchões empoeirados.
- Estamos no subsolo - informou Montoro, contendo-se para não denunciar a agilidade física de sedentário.
- Doutor, como a gente sai daqui?
- Pelo corredor, Zaira - indicou o caminho das luzes rubras.
Caminhavam a passos curtos, sincrônicos e ritmados como se corressem em esteiras, condicionados à batida eletrônica de música de fundo de academia de ginástica.
- Que barulho é esse? - Igarapé? - perguntou o Sargento Messias.
- Não é zoada de água, não - observou Zaira.
- Som de buzina - comentou Montoro.
- A passagem de nível da Djalma Batista - dilucidou Messias.
- Já?
- É a pressa, Zaira - explicou Montoro. - A gente anda como se o Palácio Cilíndrico fosse se arrebentar no chão.
Premidos pelo calor, desaceleraram à medida que se aproximavam dos filetes de luz emoldurando o portão de saída.
- Onde estamos, doutor?
- No porão do Ministério da Educação, Zaira. De costas para o Amazonas Shopping - afirmou Montoro, ao empurrar a barra de ferro, junto com o Sargento Messias.

***

Subiram o lance de escadas e chegaram ao térreo. Estilhaços de vidro ao chão, permeando o corredor a contornar o quadrilátero.
- Abaixa, Sargento! - gritou Montoro, ao ver a mira laser.
Agachados, Zaira, amparando o corpo caído de Messias e fitando a pistola no coldre do militar, perguntou:
- O senhor sabe atirar?
- Só bola de gude.
Zaira tirou do bolso o terço.
- Passa pra mim, que eu vou precisar, Zaira. Volte ao túnel. O corredor esquerdo vai bater na Cidade Nova.
- O senhor é mais novo.
- A senhora tem cinco bocas para amamentar. Eu tenho seguro de vida.

***

Enquanto a saraivada de tiros riscava o ar entorpecido de fumaça, Montoro enroscava sua tosse rouca embaixo da mesa. Percebeu a porta sendo escancarada. Viu as botas se aproximando, enquanto congelava a respiração. Puxou as pernas da sombra, que se estatelaram, levando ao piso frio a cabeça coberta, que se espatifou no vaso de cerâmica.
Correu antes que criasse coragem para olhar a poça de sangue. Correu sem olhar para os lados em vôo kamikaze no silêncio do lobby vazio de vítimas sobreviventes, testemunha esviscerada de uma guerra anunciada. Encontrou o sol do meio-dia e suspirou. A direita desapertava o que sobrara do nó da gravata e a esquerda descansava, suando vermelho.

***

A sóror se mantinha silente. O semblante de quem já viu essa história antes contrastava com a tez de juventude insofismável. A beleza de seu rosto pálido se curvara à sobriedade de seus trajes monásticos, cujo branco-e-azul dizia a Montoro que tudo estava bem, o tiro-ao-alvo em montanha-russa se encerrara. A firmeza de seu olhar transformara a consolação em esclarecimento. Com a cabeça desnuda deve ser mais bonita ainda, pensou Montoro, enquanto ela sorria de leve, espargindo-lhe serenidade. Montoro sentia o corpo dilatado, balão sem pressa para aterrissar, esvaziando os pensamentos em nuvens diáfanas.
Ai!, o braço enfaixado fisgava-lhe de volta à vigília, ao encontro da janela retratando a paisagem alaranjada de final de tarde. Tirou o cobertor do peito.
- Calma, você já vai ter alta - Montoro viu a enfermeira sem saber se era metade índia ou metade oriental.
Sentada na ponta da cama viu a filha ruborizada de lágrimas.
- Helena, o que houve? - procurou seus olhos de quatorze anos atrás de maturidade pós-balzaquiana.
- Pai, dessa vez os ataques da Resistência Baré foram mesclados. Tiroteio, míssil, incêndio, seqüestro. O senhor teve sorte.
- Tanta pirotecnia para reanexar a Amazônia ao Brasil. Deixa estar, diria o José Lins do Rêgo.
- Melhor que ser pombo-correio dos americanos.
- Ninguém forçou o Brasil a trocar a Amazônia pelo perdão da dívida externa.
- O primeiro-ministro declarou feriado por dois dias.
- Pra ver se a poeira senta mais rápido, Helena.
- É o final dos tempos. Catástrofes ambientais, crescimento do crime organizado, banalização do sexo e da violência, esgarçamento do tecido social, desregramento moral.
- Fale como alguém da sua idade. Assim você me faz me sentir o adolescente da família.
- É a chegada do Astro Intruso, pai. Ramatís já dizia isso há meio século. Está lá na psicografia do Hercílio Maes, "Mensagens do Astral".
- Às vezes o espírito de sua mãe incorpora em você.
- Mas a mamãe não era espírita, nem ramatisiana.
- Ela era consciencióloga. Achava que vivemos a era da aceleração histórica, em que um monte de trogloditas psicopatas estariam voltando à carne depois de séculos sem "ressomarem", como ela gostava de dizer.
- É o homo sapiens reurbanisatus, pai.
- Deixa essa tralha misticóide pra lá. Vá namorar, sair com as tuas amigas. Depois é só chapotelada da vida.
- Eu quero acelerar a minha evolução.
- Agora realmente baixou a tua mãe.
- O senhor é adepto do carpe diem.
- Às vezes eu me pergunto se não seria o caso de aproveitar o momento antes que um carro-bomba nos leve pelos ares.
- O importante é cumprir o dharma.
- Você é nova demais para saber qual sua missão de vida.
- Chico Xavier desde jovem exercia seu mediunato.
- Helena, quem acabou de enfrentar a morte fui eu.

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