domingo, 27 de abril de 2008

Legião: conto da Intempol, por Anderson Santos

O primeiro conto que recebi para o Projeto Intempol era uma singela história de amor passada na Alemanha em 1935, escrita por um paulistano cujo nome, por uma coincidência incrível, era o mesmo de um dos personagens do conto Eu Matei Paolo Rossi. A história, chamada Anjo, era singela, mas ainda não o que eu esperava para um conto da série.

Anos mais tarde, Anderson Santos reapareceu com novos textos, com uma linguagem que tinha tudo a ver com o clima que eu queria. Uma dessas histórias, curta, grossa e divertida, é a que vocês podem ler agora. Bem-vindos, à Legião. Aqueles que vão morrer os saúdam.


***

Aquele filho da puta do agente Belchior. Isto é culpa dele. Aquele filho da puta.

“Venha para a Legião Estrangeira do novo milênio”, dizia a propaganda.
“Conheça o mundo e, ainda por cima, seja pago por isso”, seduzia o slogan.
“Seja um verdadeiro homem e encante as mulheres”, diziam os recrutadores - As mulheres mais exóticas, mais belas, mais safadas. Todas aos seus pés.
Seja um agente da Intempol.

Obviamente, não chamavam de Intempol nos folders. Apenas os que passaram no treinamento básico e foram recrutados receberam esta informação. Uma enganação desde o começo. E eu agora fodido, metido neste buraco quente.
Oh, sim. Eu sei que a opção foi minha. Eu fui voluntário.

Eles dizem que você não pode comprar 'spirit-of-corps'. Ou você tem, ou nao tem. Só que meu 'semper-fi' está indo para cucuia agora. Como vou me virar no meio do deserto, a 50 graus, sem sombra, água ou equipamentos ?

Com treinamento, diria o porra do Belchior.
Treinamento. O agente Belchior foi meu instrutor na academia. Treinamos para várias coisas. Beber água de plantas na selva. Comer calangos na caatinga. Escorpiões no deserto. Atirar com AK-47 e AR-15. Se necessário, fazer um AR-15 de um pedaco de bambu, um pouco de suor num pano, lascas da pele do calcanhar, pedacos de unha ralada e pedras. Se tiver o tutano de um osso, melhor ainda.

Eu gostei mesmo foi de treinar com espadas romanas e floretes espanhóis. Armas civilizadas. Para matar, você tem de olhar nos olhos do seu oponente e antecipar seu próximo movimento. E quando você acerta, o sangue escorre pelas suas mãos. O banho da vitoria.

O desgraçado do Belchior adorava quando os recrutas ganhavam. Ele via o sorriso assassino nas nossas faces, a adrenalina da competição nas veias. E como nós odiávamos quando perdíamos, com as cicatrizes para lembrar dos erros. No início não pensava que era sério - lutas de treinamento até a morte. Só depois fui entender que os nossos oponentes já estava mortos, de LTAs que tinham sido ou iriam ser apagadas.

Mas eles não sabiam. E como não sabiam que estavam mortos, um morto não está morto enquanto pode segurar uma espada. Meu primeiro “overkill” foi difícil, eu não queria fazer, até que ele deu de presente a minha cicatriz do braco direito. Eu já havia passado pelos primeiros estágios de luta corpo-a-corpo, e sabia o aconteceria se não reagisse. Não se deve ignorar um centuriao romano.

Não seguro o sorriso quando lembro do momento: uma finta para a esquerda, uma ginga com a cintura e meto o pé na cara do safado. ele desequilibra, não espera (e nem conhece) o movimento de capoeira. Fica perdido por apenas um segundo, mas não preciso mais que isso. A lâmina corre precisa entre as costelas e atravessa o coração. Os olhos espelham o terror de quem fora retirado de seu tempo natal, mantido prisioneiro em local estranho e morto de forma absurda. Não o culpo. Eu mesmo, agora, talvez mostre os mesmos sinais em meus olhos. Este deserto não da tregua, é implacavel, e ira me matar.

Continuar andando é minha unica opção. Se tivesse um canudo, poderia fazer um buraco, me enterrar e esperar a noite. Respiraria pelo canudo. Simples. Treinamento é para isso. Soluções simples para problemas extremos. Mas não tenho um canudo. Não tenho nem roupas, apenas farrapos. Ao invés de um sapato, sandálias.

Não tenho uma caixa registradora que me leve para férias em Maui. Penso no Belchior, aquele verme. Não vou dar o prazer da minha morte para ele. Se eu morrer agora, fatalmente a Intempol irá achar meu corpo. É uma questão de tempo, e tempo é o que eles mais têm sobrando. E o Belchior é calhorda o bastante apenas para voltar no tempo e me atormentar dizendo como fui estúpido em morrer de forma banal.

Já vi ele fazendo isso. Uma versão futura dele apareceu no campus apenas para humilhar um recruta. Descreveu com todas as letras e minúcias a forma como aquele pobre coitado iria acabar. E na frente de todos, para ouvirmos.
Um recruta metido a intelectual falou que não precisávamos temer, era apenas para ficarmos mais atentos, que já tinha visto milhares de filmes com instrutores durões, mas que tinham coração mole. Eu não vi o instrutor ter coração mole quando enfiou uma baioneta no meio do pescoco do otário. E uma vez morto, ele ficou morto.

Morrer, então, não é uma opção. Na verdade é uma opção, mas pelo menos não é minha opção.

Areia. Dunas. Mais areia. Mais dunas. Porra de calor.

Minhas pernas ficaram três dunas para trás. Meu bom humor, a cinco dunas. Meu cu, bem, este eu tenho certeza que está aqui, pois está tão cheio de areia, que cada passo sangra a bunda. E como arde.

Missão idiota. Bom, agora parece idiota. Voltar no tempo, impedir que um traficante de relíquias roubasse um manto de um judeu que fez parte da famosa caminhada de Moisés. Quarenta anos começando no nada e chegando a lugar algum. E o manto nem pertencia a ninguém importante, era apenas para provar via testes de DNA que o comprador realmente descendia dos judeus originais, não era um judeu “convertido”.

Além de falhar de maneira horrorosa, acabei perdido no meio do deserto. Não sei como Moisés durou os tais quarenta anos aqui. Neste ritmo, não sobrevivo mais nem quarenta minutos.

Tempestade de areia. Lindo. Isso mesmo, Deus, vingue-se da Intempol na figura deste agente incauto.

Fodeu. A Areia entra pela boca, pelos ouvidos, olhos e tudo quanto é buraco.

Cansei. Deito no chão e que se dane. Belchior, você venceu.

– Eu sei - ouço no meio do vendaval. Abro o olho e vejo a figura vestida de negro.

Um cara de armadura negra no meio do deserto? Parece as mentiras do agente Herbert, aquele doido. Ainda lembro quando ele contou que foi parar numa LT onde tudo, o mundo todo, era areia. Onde já se viu? O improvável sujeito de preto me agarra e joga por sobre o ombro, carregando como se fosse eu fosse um saco de batatas.

– Não, você não é um saco de batatas - responde a figura à pergunta não formulada - Mas terá muitos destes sacos para descascar quando voltar a instrução.

Uma risada irônica se faz ouvir acima da tempestade.

– Não...! - é meu último som, em meio ao nada produzido pela caixa registradora iniciando o teleporte.

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